As Polêmicas Iniciativas de Combate à Corrupção apresentadas pelo Ministério Público e Polícia Federal – Os Fins justificam os Meios?

Diante de um noticiário recheado de “Mensalão”, “Petrolão”, “Operação Lava Jato”, “Trensalão”, “Lista de Furnas”, “Lista da Odebrecht”, “Caso Brasif”, “Privataria Tucana”, dentre outros, o combate a corrupção se transformou quase num mantra e, mais do que depressa, o Ministério Público e a Polícia Federal apresentaram, respectivamente, “As 10 Medidas de Combate à Corrupção” e a “PEC da Autonomia da Polícia Federal”.

Como ambos os projetos são de iniciativa popular, temos visto ultimamente nas principais praças, parques e nos pontos estratégicos das grandes cidades, verdadeiras campanhas do MP e da PF, na qual pedem para “quem for contra a corrupção” assinar o documento em apoio aos movimentos. E a adesão tem sido maciça. São filas enormes, repletas de cidadãos orgulhosos por contribuírem em causa tão nobre.

Ocorre que temos observado que a esmagadora maioria dos signatários dos documentos não foram informados do conteúdo dos projetos, das repercussões sociais ou mesmo econômicas das medidas propostas e, em especial, dos reflexos dos projetos no campo das liberdades e garantias constitucionais. Ou seja, a grande maioria não faz o mínima idéia do que está assinando.

Ambas as iniciativas têm recebido muitas críticas do meio jurídico, apesar de todos reconhecerem a boa intenção dos membros do MP e da PF. Tais críticas se baseiam essencialmente na forma apresentada para combater a corrupção: o endurecimento penal, inclusive com a supressão de direitos e garantias fundamentais, que não são de alguns mas de todos os cidadãos.

Em recente entrevista, o Professor de Direito Processual Penal da UFPR, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, considerou que as medidas refletem uma “guinada do MPF na direção do repressivismo e do punitivismo, sem muitos olhos para a Constituição da República e, mormente nela, para as cláusulas pétreas”.

Neste artigo, pretendemos, de forma sintética, enumerar as “As 10 Medidas de Combate à Corrupção”, e tecer comentários sobre algumas delas, além de apresentarmos nossas ponderações sobre a “PEC da Autonomia da Polícia Federal”.

Vamos então às 10 Medidas de Combate à Corrupção:

1) “Investimento em Prevenção” – Propostas Sugeridas: 1.1) “Accountability”, tornando obrigatória a prestação de contas do Judiciário e do Ministério Público sobre duração dos processos que ultrapassem prazos razoáveis; 1.2) “Teste de Integridade”, que consiste na simulação de situações, sem o conhecimento do agente público ou empregado, com o objetivo de testar sua conduta moral e predisposição para cometer crimes contra a Administração Pública; 1.3) “Percentuais de Publicidade”, onde prevê o investimento de 5% a 15% dos recursos de publicidade dos órgãos públicos em ações voltadas ao estabelecimento de uma cultura de intolerância à corrupção; 1.4) “Sigilo da Fonte”, com forte estímulo à denúncia de casos de corrupção e preservação dos denunciantes.

Comentários: 1º.) Ao empregar o aludido “Teste de Integridade”, verdadeira “pegadinha” com o servidor, o Estado estaria estimulando o Flagrante Preparado e/ou Forjado, bem como estaria institucionalizando o “Princípio da Presunção da Desonestidade”, no qual todos são considerados desonestos, salvo prova em contrário. Um absurdo. Além de totalmente inconstitucional, tal medida iria estimular o clima de desconfiança entre os agentes estatais. 2º.) O “Sigilo de Fonte” sugerido permite que o membro do MP mantenha em sigilo total a identificação do informante, sendo que o seu depoimento prestado poderá ter valor probatório na instrução do processo criminal. Este tipo de sigilo é inconstitucional, pois afronta o art. 5º, IV, CF/88, que veda o anonimato.

2) “Criminalização do enriquecimento ilícito de agentes públicos” – Proposta Sugerida: Tipificação do Crime de Enriquecimento de Agentes Públicos, visando punir criminalmente servidores públicos que enriquecerem de forma não compatível com os ganhos do cargo e não conseguirem provar que o dinheiro veio de meio lícito, sendo que não caberia à acusação o ônus de provar a origem criminosa dos valores. Estabelece a proposta: “Com base na experiência comum por todos compartilhada, se a acusação prova a existência de renda discrepante da fortuna acumulada e, além disso, nem uma investigação cuidadosa, nem o investigado, apontam a existência provável de fontes lícitas, pode-se concluir que se trata de renda ilícita”.

Comentários: Aqui estamos diante de verdadeira Inversão do Ônus da Prova. Pelo Princípio da Presunção de Inocência, cabe a acusação provar o enriquecimento incompatível com a renda, bem como a origem ilícita de recursos. Pela proposta, estaria se criando uma presunção em desfavor do acusado, já que bastaria ao MP comprovar a discrepância entre renda e patrimônio do réu. Caso o acusado não comprovasse a contento a fonte legal dos recursos, poderia ser condenado. É flagrante a inconstitucionalidade.

3) “Corrupção com Pena Maior e como Crime Hediondo segundo o Valor” – Proposta Sugerida: Aumento das penas para Corrupção, com escalonamento segundo o valor envolvido no crime, podendo até ser considerado Crime Hediondo a forma mais gravosa.

4) “Aperfeiçoamento do Sistema Recursal Penal” – Propostas Sugeridas: 4.1) “Recurso Manifestamente Protelatório” : O Tribunal poderá certificar o trânsito em julgado de decisão recorrida, quando o recurso é manifestamente protelatório ou abusivo; 4.2) “Pedido de Vistas nos Tribunais”: Impõe prazo ao membro do Tribunal que pedir vistas dos autos para estudar o caso; 4.3) “Revisão dos Recursos no CPP”: Limita a utilização de Habeas Corpus e Embargos de Declaração, bem como altera o processamento dos Recursos Especial e Extraordinário; 4.4) “Execução Provisória da Pena”: Altera a Constituição, através de Emenda, para permitir o cumprimento de pena antes do trânsito em julgado do processo.

Comentários: 1º.) Tais medidas nitidamente representam supressão de direitos do acusado. Segundo o MP, tais propostas visam resolver o problema da demora no julgamento dos processos, entretanto, os Procuradores empurram toda a culpa por essa demora exclusivamente para as defesas que, segundo eles, empregam estratégias protelatórias. Ocorre que todos os atores da relação processual (acusação, defesa e julgador) devem compartilhar a culpa pela morosidade. Já é um consenso entre os estudiosos do tema, que a demora dos julgamentos se dá, principalmente, pelo mau funcionamento do aparelho judiciário, verificado através do reduzido número de juízes e servidores, da falta de investimentos e modernização da infra-estrutura dos fóruns, delegacias, etc. Além disso, para alguém propor algo do gênero, antes de qualquer coisa, deveria cumprir seus próprios prazos, algo que, às vezes, não é muito comum em se tratando do MP (embora muitos o façam). Enfim, a demora no julgamento dos processos deveria ser combatida com MAIS jurisdição e não com MENOS garantias aos acusados. 2º.) O MPF também quer que a pena passe a ser cumprida antes de decisão da última instância: “É proposta de emenda constitucional para autorizar a execução provisória da decisão penal condenatória após julgamento de mérito por tribunal de apelação (2ª instância), ainda que pendam recursos especial (STJ) e extraordinário STF)”. Trata-se de mais um atentado ao Princípio Constitucional da Presunção de Inocência, disposto no art. 5º, LVII, da CF/88. 3º.) Nenhum instrumento jurídico desempenhou papel tão relevante para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito no Brasil como o habeas corpus. O rito célere e simplificado do chamado “remédio heróico” sempre foi muito eficiente no combate às arbitrariedades praticadas por agentes públicos na persecução penal. Apesar da sua incontestável importância para a preservação dos direitos e garantias individuais, o MP pretende limitar a utilização do instituto, o que não pode ser admitido na atual conjuntura.

5) “Maior Eficiência da Ação de Improbidade Administrativa” – Propostas Sugeridas: 5.1) alterações legislativas visando agilizar a tramitação da ação de improbidade administrativa. 5.2) criação de varas, câmaras e turmas especializadas para julgamento deste tipo de ação, bem como de ações decorrentes da lei anticorrupção. 5.3) Celebração de Acordos de Leniência com as pessoas físicas e jurídicas que colaborem efetivamente com as investigações e com o processo judicial.

6) “Ajustes na Prescrição Penal contra a Impunidade e a Corrupção” – Medidas Propostas: Ampliação dos prazos da prescrição da pretensão executória e a extinção da prescrição retroativa. Segundo o MP, a busca pela prescrição “é uma estratégia da defesa paralela às teses jurídicas, implicando em abuso de expedientes protelatórios”.

Comentários: O instituto jurídico da Prescrição pode ser entendido como a perda do direito de punir pelo decurso do tempo. É extremamente injusto transferir a responsabilidade pelo tempo perdido ao acusado. A condução do processo cabe ao juiz, e é pouco provável a ocorrência de casos de prescrição diante de um magistrado atento e um promotor diligente.

7) “Ajustes nas Nulidades Penais contra a Impunidade e a Corrupção” – Medidas Propostas: O MP propõe redefinir o conceito de provas ilícitas e revisar as hipóteses de nulidade. Justifica a proposta no fato do atual sistema tolerar nulidades por inobservância de “uma simples formalidade, por menor importância que tenha”.

Comentários: A medida seria uma forma de “Relativização das Nulidades Penais”, onde, dentre outras aberrações, seria permitido, em algumas hipóteses, a utilização de provas ilícitas, em mais uma afronta à Constituição (artigo 5º, LVI: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”). Além disso, no processo penal, a forma não pode ser considerada um formalismo inútil, mas uma garantia do devido processo legal, também contemplada no texto constitucional. É impossível, num país democrático, se pensar em processo penal despido de formas.

8) “Responsabilização dos Partidos Políticos e Criminalização do Caixa 2” – Medidas Proposta: Prever a responsabilização dos partidos políticos por atos de corrupção e similares e tornar crime o caixa 2 (contabilidade paralela).

9) “Prisão Preventiva para Evitar a Dissipação do Dinheiro Desviado” – Medida Proposta: Previsão da possibilidade de prisão preventiva para evitar dissipação do dinheiro desviado.

Comentários: É um retrocesso a ampliação das hipóteses de Prisão Preventiva. Em que pese a tendência internacional de se restringir as possibilidades de aplicação de penas privativas de liberdade, e o já caótico sistema prisional brasileiro, o MP opta por uma solução mais conservadora e autoritária para a questão. Além disso, a partir do momento em que a presunção é de que os bens do acusado são produtos do crime, há automaticamente violação à presunção de inocência.

10) “Medidas para Recuperação do Lucro Derivado do Crime” – Medida Proposta: tornar possível o confisco alargado e disciplinar a ação para extinção de domínio sobre bens ou valores, que sejam produto ou proveito de atividade ilícita, e a sua transferência ao Poder Público.

Comentários: Nos moldes em que foi proposto, o processamento de ação que visa sentença que impõe o confisco alargado, ofende a presunção de inocência do acusado, uma vez que inverte o ônus da prova, pois caberá ao réu provar que o patrimônio é lícito.

A PEC da Autonomia da Polícia Federal

O Projeto de Emenda Constitucional nº 412 visa conferir autonomia funcional, administrativa e orçamentária à Polícia Federal.
Curiosamente, o próprio Ministério Público Federal emitiu nota técnica sugerindo a rejeição da PEC 412, pois tal proposta representaria “patente ameaça ao Estado Democrático de Direito”. Os Procuradores também alertaram que “tal proposta levaria à criação de um perigoso rompimento do equilíbrio entre os órgãos de poder, conferindo poderes exacerbados a um braço armado do Estado”.

Ora, não temos dúvidas que a autonomia da PF, da forma que está sendo proposta, irá gerar um perigoso enfraquecimento do controle externo da atividade policial, bem como irá dificultar a orientação e condução de políticas públicas pelo Poder Executivo. Por outro lado, caso a PEC seja aprovada, a Polícia Civil e a Militar irão reivindicar a mesma condição.

Soma-se a isto a chamada “discricionariedade para selecionar os casos a serem investigados”, proposta na PEC. Acreditamos que, caso estes poderes sejam conferidos à PF, estaremos diante de mais um atentado à democracia.

CONCLUSÕES

Todos nós somos contrários à corrupção. Entretanto, existem formas distintas de combatê-la. E com certeza não são as atuais propostas pelo MP e pela PF.

Combate-se a corrupção com os meios democráticos que se têm à mão. Ou seja, o caminho é o aperfeiçoamento do sistema de administração da justiça, ao invés do endurecimento penal proposto. Limitar os acessos democraticamente construídos ao longo de nossa história é um erro. Os fins não justificam os meios.

É claro que quando pensamos nos atuais escândalos de corrupção e nas pessoas que estão envolvidas, todas as propostas acima soam muito bem. Todavia, se todas estas medidas forem implementadas, vários precedentes serão criados, causando reflexos em toda a sociedade, em todos os tipos de crimes e de acusações (muitas vezes injustas). Ou seja, a perda de todas essas garantias podem gerar milhões de vítimas fora do meio político, principalmente nas classes mais pobres, onde os cidadãos não podem contar com uma defesa jurídica qualificada. Ainda mais num país onde somos recordistas em 1) erros judiciários, 2) abuso de autoridade e 3) excessos policiais (aliás, uma ótima iniciativa seria o MP e a PF defenderem com o mesmo empenho uma legislação bem severa para combater estas 3 questões).

Nós advogados, somos parceiros do MP e da PF e reconhecemos a grande importância destas instituições para a efetividade da justiça e do cumprimento às leis. Contudo, freqüentemente travamos embates com seus membros, em defesa de direitos e garantias de nossos clientes. Portanto, sabemos dos riscos do apoio incondicional a estes projetos.

A intenção é boa, não temos dúvidas, porém, delas o inferno está cheio.

Flávio Henrique Costa Pereira
Sócio Fundador da Barcelos Pereira Sociedade de Advogados
Especialista em Direito Processual pelo IEC da PUC/MG
Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM